Quinta de Lemos


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Quinta de Lemos

Saí de casa esbaforido. A camionagem ocupa espaço, há que balancear, mas antes esfalfado, afobado e apressado, mas não exausto, que faltar a um convite do Diogo Rocha, jamais. Aliás, estou tirocinado para ser desabalado, até açodado, vai para mais de uma dúzia de anos, sim que o recordo, sair em apuro e alvoroço de Castelo Branco, onde fora de terra em terra e me escapuli ao Mercado 2 de Maio e ele, sabendo-me na telefonia e como gostamos de brincar com as palavras, me diz para o microfone, um “Queijo Serra da Estrela tamanho roda de camião”.

Hoje pedi-lho outra vez, mas já lá vou, antes o caminho, que sou contador de estórias, ando, ouço, vejo e conto. E saí de casa esbaforido, retomo, sem esquecer o essencial. O planeamento, importante na cozinha e na vida, até a Nacional 2 se atravessou no meu caminho. Foram 31 quilómetros de trajeto, 84 fotografias, muitas notas e conversa fugidia. Conversa fugidia, mas rigorosa. Famílias, trabalhos, afazeres. Por isso encimei a página com este belo retrato, porque o valor de uma fotografia transcende o mero registo de um momento; emoções, memórias e histórias que o tempo teima em esbater. Mais do que uma imagem, é testemunho que persiste, ou, melhor tecido, “Não tiramos uma fotografia, fazemo-la”, disse Ansel Adams, primoroso retratista das paisagens do Oeste americano, lá no Yosemite. No cá, o cronómetro aprimora o tempero e pressenti, e confirmei, que a brigada de costumes estava em trabalho, já o Diogo olha para a cozinha com a sustentabilidade nos cinco sentidos. A fotografia não é passiva, nem aproveitamento, antes verdade única. E eu tenho-lhe amizade, porque partilha, ensina e deixa-nos reviver, até vos contava a estória das sopas de cavalo cansado, mas fico-me no aprender e partilhar deste Mestre e de quem me despeço sempre com um beijo. E como fui?

Sabendo que no antes do eu sair, estavam os músicos, fiz-me ao Regimento de Infantaria 14, tomei a Nacional 2, cortei a Vila Chã de Sá, tomei a EM 597, pelo carril, passei pela rua Francisco de Assunção em Silgueiros, cruzeiros e santos, mudei à EM 596 e estou na Mesa de Lemos. Esbaforido, e bofes de fora, tomo assentadoria na Mesa de Lemos. Na Quinta também, que desta feita não tive tempo de ir pela adega. Tempo contado, e o vinho tem tempo certo, ensinou-me escritora que muito preso. Assim fui eu, qual “Escrevedor”, se eu fora um Llosa.

Peripécias que me alegram o dia, mas, que vi eu? Sim, que vi eu? Granito, nas casas, nos muros dos caminhos, na penedia dos pinhais, mansos e bravos, mais as oliveiras nas beiradas e cercaduras. Estacionado a tirar fotografias e a coligir notas, vejo trator que me tinha escapado ao retrato.

Atiro um bom dia, o lavrador parou, conversámos e segui-me a pensar  nesse “brincar com que nasceu o Museu de Passos, onde há linho, costureira, toucador, barbeiro, da cidade e da aldeia”. Lá irei, mas segui vereda, a magicar regresso pelos Três Rios.

Cheguei, ajeitei conversa, fotos e apontamentos. E sentei-me. Na secretária do Engenheiro. Vindima a chegar, o planejamento a desenhar-se e eu a apoucar.

O meu amigo Diogo Rocha é um desses raros talentos que, por mais alto que voe, mantém pés bem assentes na terra, por lá na demanda dos legumes da horta, cozinheiro premiado, de renome, sim, mas acima de tudo, um homem de raízes. Conheço-o bem, e sei que a sua essência é enxuta, desprovida de artifícios, e que ele nunca deixou de ser quem era. Falámos de filhos, de vinhos e de “culinária”, palavra que ambos apreciamos.

E que tínha eu, lá, à espera? Bom, isso são outros vinte. Cinco chefs de renome da região, do país e do mundo. Batuta do Diogo Rocha, chef executivo do Mesa de Lemos, com Uma Estrela Michelin, outra Estrela Verde e 2 Sóis Repsol. Brilho que irradiou, também, dos chefs Henrique Sampaio Ferreira; de A Tertúlia; Luís Almeida, do Memórias, Hugo Marques, de O Tosco e 100 Papas na Língua; João Ferreira, do Flora; Marco Marques, de O Monte. Lá espetei o garfo na prova.

“Divertidos porque é segunda-feira”, atira a minha conhecida empáfia, recebida com humor. “Felizes porque é segunda-feira e ainda trabalhamos”.

E se há trabalho duro, cuidadoso, delicado e de sabedoria, técnica e conhecimento, é na cozinha.

No beber, “só Touriga Nacional, anos de 2012; 2013; 2014; 2015 e 2016”, explicou-me o Hugo Chaves.

A Touriga Nacional é, deixem-se de tretas e ganhem tino, é uma das castas tintas mais emblemáticas, originária da região do Dão, leiam o Prontuário, bom porte na videira, pâmpanos de entrenós curtos, folha trilobada a pentagonal; página verde-escura e ligeiramente bolhosa. Como a minha escrita, e vamos ao cacho, compacto e cónico.

Bago, arredondado, película espessa e escura e muitas antocianinas e compostos fenólicos. Resultados da terra e do suor do lavrador? Vinhos muito aromáticos, estruturados, tânicos e com excelente acidez, que lhes conferem grande potencial de envelhecimento. 

E para proteger as vinhas, lá está engenho espanta geadas, que nossa Touriga tem grande variabilidade genética.

Jornada grande, virtuosa e também novidades, da Quinta de Lemos. Os packs de Natal 2025, com algumas das colheitas mais emblemáticas da casa.

Preços? Dos 25 aos 110 euros, captados por mim.

Não fiquei para o almoço, mas a caminho dos Três Rios fui a ruminar nesse Natal longínquo cuja planificação já tem esquiço e nota mental, levar uma de 2015, que o 2012 já conheço.

Sei que te dá trabalho, Diogo, mas temos uns indefetíveis, que ajudam a elevar o Dão, e a vossa mestria, para onde devem estar. “Coração ao Alto” e essa generosidade, perante tamanha pressa, ainda mastigava, mas o tempo é um ditador, a hospitalidade, e a humildade, devo dizer porque o sinto, de quem se apresta a colocar no prato do desajuizado merenda para o caminho, que ele “cobertura e merenda não pesam ao pastor”.

Todos os anos a boa rotina, o grande encontro. Os Amigos do Dão, juntos em espaço nobre, pensado e arquitetado, e toda a equipa da Quinta de Lemos. Afadigados e o Dão tanto vos deve. Mas eu tenho memória, e recordo o primeiro destes encontros, e que o Chef Diogo Rocha, cozinheiro de culinária nas palavras bonitas e tropeçadas, continue a promover por muitos e bons anos.

A Mesa, a de Lemos e todas as outras desde que fraternas, mostram-nos o valor das relações humanas, o melhor das pessoas. Retomo-lhe o Vargas, “O homem vale o que vale a sua solidão e a sua capacidade de a converter em comunicação, em convivência, em obra”. E saí-me, de Lages de Silgueiros para Parada de Gonta, ao encontro desses “Três Rios”.

O Castro dos Três Rios, serra e monte, onde se casam três cursos de água: o rio Pavia, o ribeiro de Sasse e o ribeiro de Asnes.

Marco geográfico, ponto de interesse histórico, com vestígios de ocupação romana. Silgueiros é isto, é passar nos Três Rios. Vindo da mesa, e, depois essa terra profunda e ancestral, o granito na paisagem, cores e texturas, sim que eu saio do automotor, ligo os quatro piscas, escrevo, fotografo, fumo e penso na harmonia que me afasta caminhos sinuosos.

Sim, a Quinta de Lemos, é contemplação, granitos, rosas, tanoaria, e muito mais. Socalcos e patamares suaves, eis o Dão, imensa tapeçaria agrícola, oliveiras centenárias, sábias, a floresta, ora densa e escura, ora salpicada de clareiras luminosas, o grande abraço aos vales e às encostas, aqui e ali, sobreiros e carvalhos.

Foi uma travessia, sem cadência nem cedência às almas, apenas ao majestoso Dão. Murmúrios. E lá fui eu, em direção à Nacional 337 e, de novo, à direita, direção a Nacional 2.

Não quero o mero caminho, não me basta, reclamo-lhe a alma, essa janela que me fez apanhar um naco da A24, onde lhe tomei Leste pela A dos 25 e eis-me aqui, “escrevedor”.

Post Scriptum: de quem ainda escreve cartas, em papel das ditas, envelopes e selos, sim, o latim, no depois de escrito. Escrever aos sacolões, que eu faço, todos os dias, por merecer.

Desculpa a pressa, Diogo, não a mereces, a tua intendência e és – como todos- amigo, Tu dos mais. Perdoa a desfeita, bem hajas pela tua hospitalidade, que nesta Beira de adegas e panelas, palavras e garrafas, somos bons, quais ganapos e guris a brincar no poema e na prosa, sois todos meus amigos, de coração e alma cheia que há muito quem pregue, com vencimento, mas sem merecimento. Será por lá o comissionamento, não sei, mas a tua cozinha é arte, arte proba, resgate do esquecido, existência. E tu, que andas pelas eiras a procurar o feijão indicado, que recebes o morse da traineira que vem lá o peixe graúdo e bom, tu, assino eu, que já nos mostraste tanto, perdoa o escritor, ou melhor, o esbaforido vaga-lume.

A caminho da secretária, que ainda vai tendo vistas para a Estrela, pensei, que jornada. Breve, curta e precisa. Valha-nos a Amizade que tudo perdoa. E o Dão. Que estes, todos eles e todos mesmo, fazem, empurram e labutam, têm merecimento. Mérito, valia, valor, virtude, capacidade, talento, importância, apreço e dignidade.

O meu amigo Diogo Rocha é um desses raros talentos que voa alto, conhece e sabe, mas não olvida, pés na terra. Um cozinheiro premiado, de renome, sim, mas acima de tudo, um homem de raízes. Conheço-o bem, e sei que a sua essência é enxuta, desprovida de artifícios, e que ele nunca deixou de ser quem era. Onde o encontramos? Nos mercados, claro e na Mesa de Lemos, ou por aí, no Japão, no mundo, aprendendo e dando a conhecer, produtos da terra. A visibilidade que merecem. Colhemos a essência do chão e essa, ninguém a leva. Daí, também as fotografias, não para usar nos cotovelos, mas porque um retrato guarda o valor de cada passo. “Valeu a pena? Valeu pois!”.

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