Nacional 17, vinhedos na Beira da Estrada


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Nacional 17, vinhedos na Beira da Estrada

Percorria a Nacional 17, deliciado com o esplendor das vinhas, a música no rádio, os vidros abertos, o sol do meio-dia a maturar as uvas, subidas e descidas, esta imensa Beira, onde, a cada curva, novos cenários e, já em Seia, a Região Demarcada do Dão,  vinhas de altitude, um tapete verde, na montanha, videiras, robustas, adaptadas ao clima, e às suas oscilações, a desafiar a gravidade nas encostas inclinadas, prometendo, ali mesmo a complexidade e a frescura que caraterizam os vinhos da circunscrição.

Nisto, uma paragem na beira da estrada, para retemperar energias e gravador. E foi ali, na Senhora da Lomba que o reencontrei. Ou melhor, que ele me topou, que eu, destrambelhado, não o vi. Gritou-me: “Amadeu, ainda nas rádios?”. E eu, com 40 anos de amizade às costas, sentei-me e alegrámo-nos. Com o reencontro, o olival e a vinha na bordadura do asfalto.

Estava na Estrada Nacional 17, que tinha escalado para uma entrevista de trabalho e deparei-me com velho amigo e enorme radialista. Lembrei-me logo ali, quando ainda não havia IP-3, de outra viagem. Meu primo Alexandre, quando se foi matricular na engenharia de Coimbra, adorava ir no carro da mãe. Ao do Pai e meu tio, apelidava banheira, um CX de conforto e segurança formidáveis. Porém, o Alexandre gostava de ir, retomo, de Opel Kadett e não subia pelo Luso, ia pela Livraria do Mondego.

Ali apanhávamos a EN-110, conhecida como Estrada da Beira-Rio ou Estrada Velha de Coimbra. Eu, a apreciar a condução e a paisagem. À chegada a Coimbra, por Sul, via a placa a indicar a Nacional 17, e o Kadett, tração dianteira e bem composto na cavalagem, virava à direita.

Quis o trabalho e a aventura que eu deambulasse pela Nacional 17, que conheceria mais tarde. Não sei se já vos contei a aventura, se tal não aconteceu, far-se-á acontecer. Mas retomo o ângulo, e a cortada à esquerda, para entrar na Nacional 17, essa essa serpente de asfalto que se enrosca pelo coração de Portugal. O caminho entre Coimbra e a Serra da Estrela é viagem a um tempo que se recusa a morrer, onde cada curva esconde história, o cheiro a pinho e a promessa de um abraço. E lá me apareceu o Miguel, que durante anos animou os dias na Rádio Noar.

A 17 é território vínico, a produção de vinho no Dão, na sub-região da Serra da Estrela, é arte moldada pelas condições únicas da montanha. O clima é rigoroso e os solos são pobres, mas é precisamente aí que reside a alquimia. Altitude, íngremes encostas de granito, profundos vales, abraçam-se nesse terroir singular, que confere aos vinhos um carácter distinto e inconfundível.O grande segredo do vinho da montanha reside na grande amplitude térmica. Durante o dia, o sol intenso amadurece as uvas, concentrando açúcares e os aromas. À noite, a brisa fria da serra trava a maturação, preservando a frescura e a acidez natural. Tudo isto se vê da Nacional 17, até o solo, de origem granítica, maestro do processo, que força as videiras a aprofundar raízes em busca de água e nutrientes, o que resulta em uvas de maior qualidade e concentração.

O resultado são vinhos com um perfil de elegância e frescura único. As castas tradicionais como a Touriga Nacional, a Alfrocheiro e a Jaen adaptam-se de forma notável a estas condições, produzindo vinhos com aromas de frutos silvestres e notas minerais. No paladar, destacam-se pela acidez vibrante e pela longevidade, que refletem a força e a resiliência da própria Serra da Estrela. Também os brancos, de frescura mineral e vigorosa acidez, são o espelho da Setta, com destaque para a Encruzado e Malvasia Fina. Sem esquecer a Uva Cão, tinta, que veio lá do alto em primórdios, para guardar o trabalho do lavrador.

Volto à Lomba, logo ali me acorreram fragmentos de jovem quando a Turboseven crepitava sonoro dançante. As reminiscências da estrada são minhas e do Escape Livre. E da discoteca, emblemática, em Seia; que me deixou memórias, naquele que foi, durante anos, ponto de encontro da Serra da Estrela. Um ambiente vibrante, próprio dos anos 80 e 90, com música pop e rock, até à música eletrónica que começava a ganhar força à medida que a madrugada ganhava à noite. E a música do Miguel nos ouvidos e o Kadett, que é real, na inventividade do sonho.

A discoteca localizava-se na estrada que liga Seia a Gouveia, a Nacional 17 e, tal como agora, era ponto de fácil acesso, com uma localização estratégica, que levou mesmo a construírem uma pista, em Pinhanços, nas bordas da estrada, e onde pode aterrar um Airbus. Mas o país não cuida deste património e eu, de cada vez que posso, atalho caminho por ela, lembrando amores de Verão e desventuras, que ela, a alma e a estrada, vivem na memória de cada um.

A Estrada Nacional 17, ou, como carinhosamente é conhecida, a Estrada da Beira – não confundir com a beira da estrada, é traçado de asfalto quente, serpenteando por entre a paisagem do Centro de Portugal, agora tisnado pelo fogo que haverá de se reerguer como tantas vezes aconteceu. É também território vínico, além da Adega de Tazem, acolhe outras quintas que produzem Vinho do Dão na orla da Nacional 17, a começar ma Quinta da Ponte Pedrinha, tal como as outras, incorporadas na sub-região da Serra da Estrela. Anoto em cabeça de viandante, a Quinta da Bica, Seia; Quinta Madre de Água e, ao alto, a Casa da Passarella, estas em Gouveia.

A Nacional 17 pulsa e canta, ao longe, pressentido e atravessado, o Mondego, esses vales profundos. Deixo para trás a doçura do Mondego e abalo-me a lugares onde o tempo parece ter abrandado, vislumbro a Estrela a erguer-se no horizonte, majestosa e imponente, a chamar por nós. A N-17 torna-se então o nosso guia para a montanha, passagem entre o mundo de cá e o reino dos gigantes de pedra. Bem sei, escrevo com a melancolia do esquecimento, mas tenho a liberdade em cada troço desta estrada.

É a N17 que nos mostra o coração de Portugal, coração rural e autêntico, pulsando ao ritmo das estações. Cosmopolita também, sofisticado sem perder humildade ou gratidão. São as gentes que teimam em ficar, paisagens que resistem ao esquecimento, a vinha plantada à espera do pintor e uma beleza que não precisa de adornos para ser sublime. E, ao longo da via, felizes balcões da hospitalidade, pão e vinho, queijo e tablado, conversas de viajantes e lavradores. A merenda do caminho.

Na calma que antecede o frenesim da vindima, as vinhas exibem a imensa glória, os cachos pendem das parras, pesados de sol e de promessa, cada bago uma pequena esfera de luz que capta a essência da terra e do tempo. Frutos de um trabalho paciente, de meses de espera, de silêncio que se enche de maturação. É, em bom rigor, espetáculo de uma beleza sóbria, sem alardes, apenas a abundância silenciosa da natureza que prepara a sua dádiva. E o trabalho do homem, cachos, firmes e cheios, à espera desse tempo, o momento exato, o toque do sol que os eleva à sua perfeição, prontos para a colheita que transformará a paciência em vinho. Sim, o proscénio, mostra-nos panorama e perspectiva, no horizonte a montanha!

Ao alto, e no balcão do café, o vinho de altitude e eu a cogitar nessa cisma da Nacional 17; rasgo a um país inteiro, passagem por sítios onde a vida se tece na simplicidade, como em Pinhanços, onde está o Senhora da Lomba, restaurante de beira de estrada e onde feijocas e queijo se unem para repasto de viajante. E o branco, claro. A Estrada Nacional 17 não é apenas caminho para destino, é o próprio destino. É a lembrança de que a verdadeira viagem é aquela que se faz com a alma e o coração, sentir o vento na cara e admirar cada paisagem que a vida nos oferece. É onde a Estrada abraça a alma e o esforço compensa o homem.

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