Vinhos para o Inverno


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Vinhos para o Inverno

Estamos nesses dias e, oficialmente, só falta mudar a hora ao relógio para esse arranque, o ritual de acender a lareira e pegar na tenaz. O crepitar do Inverno vem lá, mais mês menos semana que o tempo anda avariado, tempo de manducar de boa gana, pôr os dentes em função, limpar a barbela ao canhão da véstia e afinfar aos cartapácios, nas serranias e “vias sinuosas, por entre ribeiros e corgos, pinhais afora, que andam faunos nos bosques, Cinco reis de gente, luz ao longe, humildade gloriosa!”.

Cepas, letras, escritores, o Mestre que a geografia é nossa e é sentimental, estrada fora, refugiemo-nos na literatura e tragam vinho, do bom, que “o pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos”.

E as cores, formidáveis, fabulosas, a paisagem do Dão, vestida para a estação que declina, céu cinzento-carregado, promessa muda de chuva miúda, estende-se a vinha, a alma desta terra, agora em pleno e vibrante incêndio outonal. Não um fogo destruidor, mas uma transfiguração cromática de uma beleza dolorosamente efémera.

Os socalcos exibem fileiras rigorosas, os troncos retorcidos das videiras, esculturas humildes de escuridão, grito silencioso. O verde-escuro do vigor estival rendido à polifonia, policromia, um coro profundo e rubro, quase vinho tinto ele próprio, escorre e mescla-se com o laranja queimado e vivo, beira o cobre antigo e o tijolo. Há o amarelo gema e pálido, salpicando extremos, ouro fino que se dispersa ao toque de um sopro frio.

A sebe e a bordadura do terreno, um manto de castanhos secos e ocres pardacentos, onde a erva pisada se deita sob o peso da bruma e do nevoeiro. Folhas caídas, húmidas e amarrotadas, compõem um tapete de texturas, onde se adivinha o cheiro a terra molhada e a fermentação subtil. É um realismo honesto do ciclo, a vida recuando, recolhendo-se, mas deixando atrás de si um rasto de beleza intensa e indomável.

Lá ao longe, as casas de telhado telha, um laranja mais domesticado, seguro, largo o horizonte, testemunhas, as oliveiras, silenciosas e familiares da dança selvagem das cores da vinha. Este é o Dão, neste instante mágico e melancólico: uma tela viva de tons terrosos e ardentes, sob um sério, mas profundamente colorido.

Deixem uivar os lobos nesta hora confraternal, mesa comum e cabaça à roda, chamem o taverneiro, tragam cântaros e tourigas, copos para os mais pestinheiros, o abade, o bacharel, o professor, Camões, Camilo, Eça e alguns mais que este é um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tem em si mais alma que muito poema ou livro santo!

Agora que o Inverno se prepara para assentar arraiais e a lareira aquecerá corpos e almas penso nessa frase, “Se regionalista é ter descrito outra coisa que não Lisboa, não reclamo melhor diploma”. Palavras, fortes e tonitruantes.

A região do Dão são 20 mil hectares de vinha, reunidos num périplo que inclui adegas, produtores e quintas. Às vezes parece que nos esquecemos do essencial.

O vinho pode ser o grande agregador da oferta da Região, essa unidade que muitos, enfeudados nas suas courelas, teimam em não querer lavrar. O cotovelo e a rodilhice ocupam-nos os afazeres e está-se assim. Enclausurado.

A fantástica história de uma região vinhateira com créscimos e préstimos reclama chancela no prelo. Encostas, dos socalcos, das quintas e antigos solares e dos miradouros deslumbrantes, o Dão também nos oferece outros prodígios e afirma-se.

Cá, sem favores ou intercâmbios, permutas que não nos acrescentam nem aquecem ar frio, rude e bucólico. O Dão é um enorme raio de um sol que tudo ilumina.

O Inverno é, por tradição, o reino dos tintos. Das castanhas ao bacalhau da consoada, o frio pede vinhos encorpados, untuosos, envolventes, e para essa medida há tintos. Um poderoso copo de três serão os brancos, os grandes bancos do Dão e o Encruzado, um poderoso Almirante ao Dão. Refrigério de invernos quentes na paisagem muito retalhada e telúrica, pinheiros e eucaliptos, soutos entalados no granito e as serranias, da Estrela ao Caramulo, do Bussaco ao Montemuro, sentinelas que protegem o Dão e embalam as parreiras.

Eu estou em crer, primordial, quem investir tem retorno, fundamental, prestaremos um bom serviço ao Dão. Sentir a Região Demarcada, a grande circunscrição, apesar de tantos Girabolhos.

Focar apenas a narrativa na descrição das experiências de viagem e enoturismo, que é a melhor forma de esquecer a rigidez de um plano e desfrutar do caminho.

E nisto vejo-lhe, de novo, essa Serra da Estrela, subo pela Ponte Palhez, cruzo Mondego entre Mangualde e Gouveia e distritos, um arcaísmo, Guarda e Viseu.

Essa, mais outra, estrada, a Nacional 232, sobre o rio Mondego. E outra para ser submersa, Girabolhos e as vinhas, estamos na sub-região da Serra da Estrela.

Ter um Palácio dos Condes de Anadia, pela partida, e um Palacete do Pires do Valle pelha chegada, eis, em tanto, o par da riqueza histórica e senhorial da região. Aldeias na montanha, tranquilidade, a elegância austera dos vinhos do Dão e a beleza rude e granítica da Serra da Estrela que os protege e define. Esqueça os mapas e desfrute do copo de vinho. E mude para o banco do copiloto. Em Tazem estão a Adega Cooperativa de Vila Nova de Tazem, em São Paio, a Casa Américo, Vinhos de altitude. A Quinta da Espinhosa, ali perto. E nisto, estou eu ao borralho.

“Comeram-lhe à tripa forra carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar, por um prato dele, a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho de sal, até fazia cócegas no céu-da-boca. Quem bem come, bem bebe! Acabaram a janta enfrascados e lerdos como patos na engorda”. 

Embriague-se na literatura que os livros, assim como o bom vinho, deve ser entendido para ser apreciados.

Seja responsável, traga moderação e faça-se ao caminho. Venha com passos serranos a esta Beira que é Alta. Bailem os copos que o Dão é gigante.

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