Chegar ao Touro, já nas faldas da Nave e no coração das Terras do Demo, é pisar a linha da Demarcação Vinícola do Dão. Porém, o passeio vale a pena, a promenade leva-nos pela última capela construída pelo povo, deixa-nos cruzar os Caminhos da Lapa e, na volta, atravessamos a Ponte do Abade e regressaremos à circunscrição do Dão. A Região Demarcada do Dão, instituída em 1908, abrange a província histórica da Beira Alta, estende-se por parte dos distritos de Viseu, Coimbra e Guarda. É conhecida como a primeira região de vinhos não licorosos a ser demarcada em Portugal. Relevo acidentado, um planalto de altitude média, as vinhas estão maioritariamente plantadas em encostas, entre os 400 e os 500 metros de altitude.


Inverno frio e chuvoso, antes do clima se alterar, e Verão quente e seco. Este enclave geográfico está protegido, de humidade e ventos. A Este e Sudeste, a imponente Serra da Estrela, garante as maiores altitudes de Portugal Continental e proporciona uma influência de ar fresco, a Oeste a Serra do Caramulo, a Norte e Noroeste, as Serras do Buçaco e da Nave. Iremos ver esta última, ao de leve na penumbra, que a encruzilhada junta duas demarcações vínicas e gosto-vos do lado de cá. Dão, o epónimo que atravessa a região central, o Mondego, que corre a Sul e Sudoeste, a fronteira da região, e o Alva, um afluente daquele, que corre na parte sul da demarcação.


O roteiro inclui a última capela construída por vontade do povo, o Dão e uma filosofia.
Saia de Viseu seguindo a Estrada Nacional 229, na direção de Sátão e Aguiar da Beira. Esta nacional é o eixo do Dão, passe Sátão e, siga as indicações para Vila Nova de Paiva, faça o corte para a Nacional 329 que o leva à localidade de Touro.
Arribo com mochila e papel, voltarei à estrada, antes meio destino, duas colunas de betão, altar e fonte. Daqui vejo a Nave, vislumbro a fé, penso no epitáfio, fez-se a vontade às gentes, que aligeiraram as algibeiras. O templo é dedicado a São João Baptista, um monólito de betão, uma casa na aldeia, aberta a toda a comunidade, o Côvo é importante, é rio e na capela corre água e luz, o tal rasgo divino.

É tempo de espreitar o tempo. Ver essa fé erigida, em nome de convicções.
Daqui seguimos, tranquilos, pelos Caminhos da Lapa, mais de cinco séculos de história, chegou a ser o maior Santuário Mariano da Ibéria, com peregrinos que viajavam de todo o mundo. Os caminhos que levam ao santuário foram abandonados com a expulsão dos Jesuítas de Portugal e foram agora descobertos os primeiros sinais que comprovam a sua existência. Os sinais estão escondidos no mato, outros mudaram de lugar e são as verdadeiras testemunhas que comprovam a existência dos caminhos. A Lapa tinha os caminhos da fé que eram romarias com um misto de sagrado e de profano, vinham de Norte, do Centro, do Sul.

A poente está o Miradouro da Senhora da Piedade, a nascente, o miradouro da Senhora da Guia, a Norte o de São Tiago, a Sul o de São Domingos.
Quando diminui a proximidade ao Santuário os sinais e marcos tornam-se menos espaçados. O caminho é bom para qualquer veículo, se for mais baixo, avance em média velocidade e espreite, as cruzes na Senhora dos Aflitos ou um simples cruzeiro na Capela da Senhora da Aflição são garantia que vai no caminho certo. O culto foi entregue à Ordem dos Jesuítas, em 1576 e ali ergueram igreja, colégio e santuário.
As pedras do caminho são romanas, medievais, mas a pequena jornada traz apetite. E estou na Lapa, onde como na Casa das Trutas, prodigioso cozido. Couves, batatas, nabo, cenoura. De carnes, orelha, chouriça, de carne e de sangue, fatias escuras de morcela, farinheira, salpicão, vitela.


O cozido está bem montado, pede um Dão tinto, digestivo e com menos de vinte mil réis já almoçou. Um prato de inverno, denso e reconfortante. E tradicional. Daqui sigo o trajeto do Santuário de Nossa Senhora da Lapa para a Ponte do Abade, pelas estradas regionais, nove quilómetros, a descer pelo Caminho Municipal 1018 e logo vejo o casario da povoação de Ponte do Abade. A aldeia encontra-se a uma distância curta da nascente do Rio Dão, lá iremos aos planaltos graníticos da Beira Alta.
A Ponte do Abade, sobre o rio Dão é de granito, pedras para um marco no troço inicial do rio. Estas pontes na região do Dão são tipicamente construídas em cantaria de granito, com tabuleiros assentes em arcos de volta perfeita, refletem a arquitetura da pedra, nesta que é a aldeia mais dividida do país, com a linha de fronteira a passar pela própria povoação.
Prossigo na Nacional 226 e corto para o Dão, a nascente do Rio, que dá nome a toda a região vinícola. O berço na Barranha, 92 quilómetros, dos planaltos da Beira, em altitude e domínio granítico.
A nascente localiza-se na freguesia de Eirado, na povoação da Barranha, a 750 metros de altitude, um vasto maciço de granito que funciona como um divisor de águas. No seu ponto de origem, o Dão não se manifesta imediatamente como um curso de água caudaloso; é muitas vezes um fio de água ou um ponto húmido que se escapa do solo granítico. A presença torna-se mais marcada à medida que avança. Na fase inicial, o Dão atravessa o planalto granítico de Aguiar da Beira num vale encaixado, passando por povoações como Porto de Aguiar e Dornelas, onde o seu leito começa a ser envolvido por densas galerias ripícolas. O Rio Dão irá desaguar no Rio Mondego, perto de Santa Comba Dão, na albufeira da Barragem da Aguieira, não preparei essa demanda, e lá está o Medronheiro, ficamos a meia cartografia.


Eu volto aos caminhos do Dão, corto da Nacional 226 para Sequeiros e eis-me na Nacional 229. E ali, pouco antes do Avelal, uma questão, nada de meramente geográfico, mais logístico e vontades. O dilema entre a Taboadella e o Solar do Dão reflete a eterna tensão entre o Ser e a Representação, ou entre a Origem e a Instituição. Ir à Taboadella é procurar a raiz, o telos do vinho. Esse lagar romano escavado na rocha, testemunho da ancestralidade, caminho do conhecimento.
No fundo, o caminho do vinho perfeito integra os dois, o respeito pela terra na Taboadella e o reconhecimento da sua excelência no Solar.
O Lagar Romano da Taboadella é de natureza rupestre, escavado no monolítico de granito, a persistência dos métodos de vinificação, num prato pio. O Lagar é romano, embora a história medieval coloque a propriedade nas Inquirições de D. Afonso III, em 1258. A verdadeira resposta reside na busca individual, o que falta completar na jornada? Penso na Capela de São João Batista, a estereotomia, o cortar e dobrar e sigo inquieto.
Ir ao Solar do Dão, em Viseu, é procurar a consciência e a ordem. E encontrar a Janeira.
O solo ou o saber? O sabor. Vou por onde vim, pela Nacional 229, estrada mártir e chego ao Avelal, a reclamar secos e molhados. Estou no melhor entreposto comercial da Beira. Vinho, petiscaria, lavoura, barbeiro e jogo. Uma Janeira de estilo e vontade, como o Dão, penso que escolhi bem.


O Solar, enquanto antigo Paço Episcopal e atual sede da Comissão Vitivinícola Regional, representa a estrutura que legitima e promove a essência do vinho. É a manifestação da polis, a comunidade organizada que regula, certifica e apresenta o produto ao mundo.


Escolher o Solar é escolher a perspetiva do logos, a razão, a catalogação e a prova de que o Dão é uma identidade muito própria.
Merendado, completo a Nacional 229 e entro no Fontelo, ao Solar do Dão, feliz por ter bordejado meia geografia.







