Entre Currelos e a Foz do Dão, os rios vinhateiros


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Entre Currelos e a Foz do Dão, os rios vinhateiros

“In vino veritas”, o antigo sussurro romano ecoa nestes rios, afirmando que na embriaguez a língua desata e a Verdade se revela, límpida como o mosto. A verdade é aqui, nessa alegoria festiva, o reencontro de dois rios, belos e irreverentes. Partamos à descoberta desses rios vinhateiros. Primeira Paragem, Oliveira do Conde, em Carregal do Sal, partindo de Viseu, tome a estrada para a Pinoca e, depois, em Nelas, corte para a Nacional 234.

No concelho de Carregal do Sal, o Dão já percorreu uma parte significativa do seu trajeto, descendo dos planaltos da Beira Alta. Nesta morada, o rio é a fronteira que delimita o concelho de Carregal do Sal a Norte, separando-o do concelho vizinho de Tondela em alguns troços. O vale do rio contribui para a beleza paisagística e para o microclima ameno da região, encaixado entre a Serra da Estrela, a Este e o Caramulo, a Oeste.

O Dão é a espinha dorsal Região Demarcada, as suas margens e os vales dos seus afluentes fornecem os solos graníticos e o terroir ideal para a produção dos aclamados Vinhos do Dão, que são de grande importância económica para o concelho.

Curioso é o próprio nome da sede do concelho, Carregal do Sal, ligado ao rio. Historicamente, o sal vinha em barcos, pelo Rio Mondego e subia o Rio Dão, até este local, onde era descarregado e armazenado, pese embora alguns autores defenderem a origem na “carrega”, uma planta que aqui se dá. Os mais justos acrescentam. A “Carregal”, ter-se-á juntado o sal, este devido ao cloreto de sódio, armazenado em grandes depósitos, num local ainda hoje designado por “salinas”, localizado numa área central da vila. O sal, cujo comércio consta em documentos de 1758, era transportado em barcos da Figueira da Foz até à Foz-Dão, um porto fluvial e povoação que ficou desaparecida com a Barragem da Aguieira, seguindo em carros de bois até Carregal do Sal.

O Rio Dão não atravessa a sede do concelho, mas influencia as freguesias na sua parte Norte e Noroeste. Embora a aldeia mais conhecida, Laceiras, não esteja na margem do Dão, o rio Criz, afluente do Dão, atravessa a freguesia e a Ecopista do Dão passa por ela. Em Beijós, o Rio Dão passa junto a esta freguesia, sendo referida a zona de “Salinas” nos limites de Beijós, que era o local onde o sal descarregado do rio ficava armazenado.

Em Oliveira do Conde, o rio Dão e o seu afluente Rio Criz, que atravessa Oliveirinha têm grande importância no passado deste antigo concelho. Aninhado na Plataforma do Mondego, no vasto Planalto Beirão, Carregal do Sal é um concelho banhado a Norte pelo Rio Dão e a Sul pelo majestoso Mondego. Uma terra que respira a antiga Lusitânia, moldada desde os tempos primevos por invasores e, sobretudo, pelos Romanos, cuja marca indelével jaz em antas e vestígios arqueológicos.

Inserido na demarcada Região do Dão, Carregal do Sal é um berço vinhateiro, incluído na sub-região de Senhorim. Aqui a vinha esculpe a paisagem, tecendo a história e a economia local. É aqui que sobrevive a tradição sublime, a pisa da uva, onde grupos de homens transformam o fruto em néctar, nos lagares de pedra e nas suas prensas de madeira, um ritual que desafia o tempo. A herança romana floresceu em prósperas comunidades agrícolas, e o vinho, sustento militar e moeda de exportação, ganhou novas técnicas, a arte da poda, os socalcos e castas renovadas. Na Alta Idade Média, desvelam-se as lagaretas, o mais antigo vestígio da tecnologia de vinificação. Dezenas destas estruturas rupestres, esculpidas na rocha, surgem perto das vinhas. No piso, calcatorium, a pisa do pé humano; no pio, lacus, o mosto escorre para ser recolhido. Estes lagares, que perduraram até, quiçá, ao século XIX, contam a história de uma vinificação ancestral, de vinhos de cor discreta.

Do Vale da Mena às Chãs, a densa concentração destes achados arqueológicos atesta a atividade milenar, favorecida pela riqueza fluvial dos rios Dão e Mondego. Nos séculos XVI a XVIII, a nobreza rural também se dedicou à vinha, perpetuando o legado do vinho que faz de Carregal do Sal um concelho de paisagem inesquecível e de sabor intemporal.

Na região é por esta altura da Alta Idade Média, entre 476 até ao século XI, que se disseminam as lagaretas o mais antigo vestígio histórico de tecnologia de vinificação que podemos encontrar. Na região existem dezenas de lagaretas, tendo em comum entre elas, a sua localização sempre fora de aglomerados populacionais e perto de vinhas.

O número significativo de lagaretas escavadas na rocha inventariadas em Carregal do Sal são testemunhos que comprovam as práticas, antigas, da cultura da vinha, produção e consumo do vinho. Os vestígios existentes, como as lagaretas, apontam para uma atividade ancestral, cuja origem se perde em tempos muito recuados da História.

Paralelo à vida, corre o Dão, vindo de longe, trazendo nos seus ombros a memória dos planaltos frios, dos socalcos xistosos e dos vinhedos que se lhe debruçam nas margens. É um rio de carácter, por vezes irrequieto, por vezes profundo, embalado pelo silêncio das serras onde nasceu. As suas águas escuras, com um travo a terra e a granito, espelham a história dos casarios antigos e dos caminhos da Beira Alta.

Ao longo do seu percurso, o Dão murmura segredos de castelos e lendas de gente de trabalho, até que o horizonte se abre. Não para um mar de espuma, mas para o vasto espelho da albufeira da Aguieira, onde a pressa dos rios é domesticada pela engenharia do Homem, criando um lago sereno e azul.

É neste silêncio de água parada, perto de Santa Comba Dão, que se dá o encontro.

O Mondego, o pai dos rios, vem do alto da Estrela, com a imponência de quem sabe ser o maior rio inteiramente português. As suas águas são mais largas, mais imponentes, carregando a nobreza de quem chega calmo, mas poderoso, com a luz do sol a dançar na sua superfície. Não há choque, nem tumulto, apenas uma rendição suave. O Dão, afluente e filho, curva-se e entrega o seu caudal, a sua essência, a sua carga de vida e história, ao corpo maior do Mondego. As águas misturam-se sem resistência, diluindo as memórias do Dão no destino grandioso do Mondego.

E assim, juntos, como um só corpo aquático, seguem o seu caminho. A partir daqui as águas que nasceram na Barranha e as que brotaram no Mondeguinho partilham o mesmo fado, fluindo sob o mesmo céu, um abraço eterno na paisagem, um lembrete de que todos os caminhos, por mais distintos que sejam, se podem unir num fluxo de vida partilhado.

A partir de Oliveira do Conde, a viagem segue para Sul até Santa Comba Dão. A Foz do Dão, antiga povoação submersa pela construção da Barragem da Aguieira, oferece uma paisagem deslumbrante sobre a albufeira e os rios, ideal para contemplação e fotografia. É um final de roteiro com uma vista inesquecível.

Pode fazer, se decidir viajar pela Nacional 2, parte do trajeto a partir da Ecopista do Dão, um troço da antiga Linha do Dão, que atravessa o concelho, proporcionando um percurso de lazer e contemplação, que permite aos visitantes seguir de perto o leito do rio e a paisagem envolvente.

Como ir?

Vindo de Sul pelo IP-3 e depois, em Santa Comba Dão, IC 12 até Carregal do Sal. Vindo de Norte, apanhar a A 25, sair em Mangualde e tomar o IC 12.

Como ir?

Vindo de Sul pelo IP-3 e depois, em Santa Comba Dão, IC 12 até Carregal do Sal. Vindo de Norte, apanhar a A 25, sair em Mangualde e tomar o IC 12.

https://maps.app.goo.gl/4KEPmzTwAStj9Lb37

O que ver?

Carregal do Sal possui um rico património arqueológico que abrange desde vestígios do Neolítico, há cerca de 7.000 anos, até à Idade Moderna. O concelho é notável pela presença de um importante conjunto de monumentos megalíticos, como dólmenes e orcas e pela Casa de Aristides Sousa Mendes. A Casa do Passal, também conhecida por Vila de São Cristóvão ou Casa do Doutor Aristides de Sousa Mendes é uma mansão localizada em Cabanas de Viriato. No interior está o Museu Aristides de Sousa Mendes, diplomata português que, durante a Segunda Guerra Mundial, desobedeceu às ordens do regime de Salazar e emitiu milhares de vistos em Bordéus, permitindo que refugiados, muitos deles judeus, escapassem da perseguição nazi. Este ato de coragem, que salvou um número estimado de mais de 30.000 vidas, levou à sua queda em desgraça e aposentadoria forçada, mas foi reconhecido postumamente como um herói, sendo honrado com títulos de Justo entre as Nações em Israel e condecorado em Portugal, culminando com a sua entrada no Panteão Nacional. 

O que comprar?

Enchidos, no Talho do Luís, ou Fumeiro Flor de Sal, no centro da vila de Carregal do Sal.

O fumeiro deste produtor recorre a uma rigorosa seleção das carnes mais nobres para o efeito e nisso somos rigorosos

A quem perguntar?

Ao Pedro, conhecedor da região e rosto do Petz Bar, famoso pela sua cozinha tradicional portuguesa, muito e bom, com pratos saborosos e porções generosas. É um local com um ambiente rústico e acolhedor, frequentemente descrito como tendo a “comida típica da boa, daquelas que lembram a casa da avó”, que permite levar o vinho e que é, também, ponto de encontro dos vinhateiros da Região.

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