A felicidade tem muitos nomes. Anita, Afonso, sol, vinho, pão, amanteigados, embutidos, inebriante. Mas este ano há pouco para celebrar. Numa fuga a esta insanidade, refugiado no mais Norte da Península, vi-me e desejei-me para encontrar Vinho do Dão, na restauração e no comércio. A promoção não está a fazer o seu trabalho, o vinho não sai das adegas do Dão para o cardápio da restauração e das garrafeiras e a aflição de muitos produtores é notória. Porque vão precisar do dinheiro para recuperar as vinhas.

E todos sabemos como a vindima, que já começou, é sempre uma festa. Esse culminar do trabalho, árduo, dos lavradores. A emoção de colher as uvas que hão-de criar os nossos vinhos e espumantes é sempre imensa. Este ano vejo mais preocupação que felicidade.

Estes dias de festa nas vindimas, tratores cheios, corrupios, cores e cheiros. De mosto, de folhas, de petiscaria e felicidade. A vindima é isso, pé a dançar, braço a levantar e escorropicha que foram muitos dias a olhar os céus, esperando a chuva, desejando o sol, suor e moedas, tantas moedas com que se sustenta uma região que corre desassossegada, de tesoura na mão, cortando, depositando, entregando e pisando. Embotelhando, vendendo, correndo e crescendo, nós e eles, eles e as tourigas, os encruzados, os jaens mai-los rorizes e os alfrocheiros. Vozes claras do viver da gente que a terra é fértil, a alma rude, as mãos generosas. Pão e vinho que a terra é de quem a trabalha e temos muitos, tantos e genuínos, senhores. Engrandecendo e fazendo um dos vinhos mais sumptuosos que se tragam que todos são bons, mas o nosso, o de casa, é sempre o melhor porque é daqui, é daqui que o vemos fixando raízes, alampando cepas, correndo ao tonel e ao pipo. E por isso fazemos a festa, voluptuosa e buliçosa, que estamos felizes, cheios que nem um odre. Mas não estamos.

Um gajo atira o olho ao binóculo e exclama de espanto! No refratómetro e no céu, esse azul que dita que poderemos estar a viver uma das mais inacreditáveis vindimas, cesta na mão, chapéu na cabeça, tesoura nas mãos e olho no poceiro. É descer ao Dão, subir a Moreira, percorrer Silgueiros e abalar a Santar. O Dão é nestes dias, e nos próximos, uma quinta de merendeiros e cortadores, de tractoristas e carregadores. E de mulheres, que cortam e achegam lume ao petisco. No ontem que é hoje, que marcha sempre uma patanisca, um branco que embala a bola, uma isca do per junto que reclama centeio. Sim é dia de fona e de festa, espreitam as garrafas nos cais das adegas, geme a prensa, escorre o mosto e abundam preocupações, desassossegos. Beberemos todos esta pinga que se escorre cuba acima, brindaremos e cantaremos. Mas o suor, esse velhaco quotidiano, é que dita a sorte dos homens. E por estes dias a sorte chega com cheiro de terra queimada. Parte das nossas vinhas arderam, engolidas pelas chamas de uma insanidade que o país não quer resolver. O que a natureza nos deu com tanta generosidade e ajudou a manter durante décadas, o fogo levou em poucas horas, deixando atrás de si um rasto de cinzas, silêncio e dor. E cofres vazios.
Um prejuízo material e essa ferida aberta, choramos com a paisagem queimada, com as raízes calcinadas, com a memória viva que o fogo quis queimar.
Ainda não há dados oficiais detalhados sobre a área de vinha queimada pelos incêndios deste ano em Portugal. O que se sabe, com base em notícias mais recentes, é que o ano de 2025 tem sido particularmente difícil em termos de área ardida total, com os fogos a consumirem mais de 222 mil hectares.
As regiões mais afetadas incluem o Centro e o Norte do país, zonas onde a produção de vinho é muito importante, com duros impactos em muitas vinhas.

Em Novembro, já ninguém se lembrará do problema dos incêndios. Problema principalmente do nosso interior esquecido, logo agora que, com o turismo, estávamos a colocar ca cabeça de fora.
As soluções existem, mas são caríssimas, requerem reformas estruturais. Só poderão ser implementadas se forem encaradas pelos governantes e pelo povo como uma prioridade absoluta para o país.
Para que tal aconteça, precisamos que o tema não desapareça da praça publica ao fim de umas semanas.

A casta dos homens e mulheres que se alevantam da cama erguendo olhos aos céus, acreditando que o tempo vai de bonanças que ainda há muito para colher, tardam maturações e no esperar é que vem o ganho. Beberemos todos esta pinga que se escorre cuba acima, brindaremos, mas não cantaremos.
Vai triste o Dão.